segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

O Envenenamento da Infância



Susana Salomão Prizendt

O fato de nosso país ser o campeão mundial na utilização de agrotóxicos para a produção de alimentos já começou a ser divulgado há alguns anos. Mas essa divulgação não apenas não chegou à grande mídia (e, portanto à população em geral), como ainda não provocou as mudanças intensas no modelo produtivo que são necessárias para garantir a segurança alimentar dos brasileiros.
Se cerca de 20 % dos pesticidas fabricados no mundo são despejados em nosso país,totalizando cerca de um bilhão de litros ao ano e 5,2 litros por brasileiro (Panorama do Mercado de Agrotóxicos no Brasil, Anvisa, abril 12, 2012), podemos falar que estamos sendo cobaias humanas na absorção de uma alta quantidade de substâncias químicas produzidas para eliminar a vida. E como não detemos apenas o recorde quantitativo, mas mantemos em uso os pesticidas mais perigosos, já proibidos na maior parte do mundo por causarem danos à saúde, também podemos afirmar que estamos sendo submetidos a uma combinação de substâncias mais perigosas do que as substâncias do mesmo tipo que outras populações estão absorvendo.
Para um adulto uma exposição como essa é extremamente danosa, com conseqüências a curto, médio e longo prazo conforme a dosagem e a composição. Há vários estudos científicos que respaldam essa tese e explicam quais são os principais danos causados aos diversos órgãos do corpo humano. No entanto, quando essa mesma exposição ocorre sobre seres que ainda não estão completamente formados, as conseqüências são ainda mais dramáticas.
O que podemos esperar de seres ainda em gestação no útero materno, bebês e crianças, quando os submetemos a uma dose alta e variada de agrotóxicos? Para responder essa questão, já existem não apenas estudos para serem analisados, mas também fatos reais para serem acompanhados. Eles ocorrem no dia-a-dia de uma parte dessa população brasileira que mal iniciou a vida e já está tendo sua rotina alterada de forma drástica, percorrendo hospitais e tendo que ingerir remédios ao invés de brincar ou ir à escola. 
No seminário Os Agrotóxicos, seus Impactos na Saúde e as Alternativas Agroecológicas no Município de São Paulo, realizado em 15 de abril de 2013 na Câmara de Vereadores dessa cidade, houve um debate extenso sobre o tema da alimentação infantil, estimulado pela tramitação na Casa de um Projeto de Lei que propunha que 30% da merenda escolar municipal fossem necessariamente constituídos por produtos orgânicos.
O evento foi uma iniciativa do comitê paulista da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida e daFrente Parlamentar Municipal Pela Sustentabilidade(presidida pelo vereador Ricardo Young), em parceria com movimentos sociais que atuam no setor e teve como base para as discussões dos impactos dos agrotóxicos na saúde humana as apresentações realizadas pelas doutoras Silvia Brandalise, oncohematologista pediátrica, diretora do Hospital Infantil Boldrini,e Karen Friedrich, toxicologista do Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde da Fiocruz.
O conteúdo abordado pelas duas médicas baseou-se em suas pesquisas acadêmicas e, no caso da Dra Silvia, em sua experiência no atendimento de crianças atingidas pelos diversos tipos de câncer.
A partir do conjunto das apresentações realizadas, foi possível explicitar o processo que ocorre quando os agrotóxicos entram no organismo humano. Algumas das substâncias que compõem suas fórmulas promovem uma ação patogênica caracterizada por gerar
“eventos moleculares e celulares, com aberrações cromossômicas, estresse oxidativo, distúrbios de sinalização celular ou mutações que podem estar associadas a maior risco de câncer” (Infante-River C.J..ToxicolEnviron Health B CritVer 2007, 10:88-99, Agopian J. et al. J. Exp. Med. 2009, 2006:1473-83 , Lafiura K.M. et al. PediatricBloodCancer, 2007; 49:624-8).
Na infância o câncer tem seu desenvolvimento potencializado por um conjunto de fatores como: Infecções, Uso de hormônios na gravidez, Alterações genéticas, Exposição a derivados de benzeno e Contaminação com metais pesados.  A esse conjunto multifatorial é que se soma a ação dos pesticidas. Entre as doenças oncológicas e hematológicas que eles favorecem estão: aplasia de medula óssea , câncer , citopenias isoladas ou combinadas e mielodisplasia (Perera F et al. Ann. NY AcadSci. 2006; 1076:15-28).
Doutora Silvia Brandalise, em sua explanação no seminário já mencionado, apresentou um estudo chamado Exposição a pesticidas e risco de câncer da criança: uma meta-análise de estudos epidemiológicos recentesem que demonstra “Associação significativamente positiva entre a exposição a inseticidas, herbicidas e fungicidas com a ocorrência de:
leucemias, linfomas, tumor cerebral, sarcoma de ewing, neuroblastoma, tumores germinativos, tumor de wilms” (Vinson F et al. Occup. Environ. Med. 2011; 68:694-702 doi:10.1136/olmed2011-100082) sendo “ O período pré-natal o mais crítico quanto a exposição aos pesticidas, tanto a exposição paterna quanto a materna a esses produtos, pode estar associada com a ocorrência de diferentes tipos de câncer na criança... Fetos, neonatos e crianças são mais vulneráveis aos efeitos dos poluentes ambientais, com muitas vias de exposição (placenta, leite materno, pele, trato digestivo e vias respiratórias” (Vinson F et al. Occup. Environ. Med. 2011; 68: 694-702).
Um fator que mereceu atenção especial no estudo foi a relação entre aexposição a inseticidas residenciais e herbicidas durante a pré-concepção, a gravidez e a infância, e o desenvolvimento de leucemia nas crianças, mostrando dados em que estão positivamente associadas. (Turner MC et al. Health Perspect 118:33-46http://dx.doi.org/Online 29 july2009, Van Maele-Fabry, G et al. EnvironIntern 2011; 37:280-291)
E o que podemos esperar se já há provas de que o principal alimento dos seres humanos logo após virem ao mundo (época mais sensível aos riscos representados pelos contatos com agrotóxicos, como mencionado no estudo), o leite materno, demonstra estar contaminado com essas substâncias?
Sim, nossos lactentes já começam a ser intoxicados por via oral através da ingestão do próprio alimento fornecido diretamente do seio materno, considerado o mais adequado e completo para os primeiros meses de vida.
Dois estudos feitos nos últimos anos por pesquisadoras de universidades brasileirasanalisam essa contaminação, são eles: “Leite de mães brasileiras contaminado porbifenilaspolicloradas(PCB)” -Cláudia Hoffmann Kowalski, Unicamp , 2009,carmo@reitoria.unicamp.bre “Leite de mães de Lucas do Rio Verde (MT) contaminado por pesticidas DDE, β-endossulfam, DDT”- Danielly Cristina de Andrade Palma , Universidade Federal de Mato Grosso, 2011.
Algumas das conseqüências dessa contaminação podem ser encontradas em um estudo sobre o aumento da incidência do câncer em crianças(0 – 14 anos de idade), publicado pela WHO / IARC Biennal Report 2002/2003.
Ele revela que nas décadas de 70, 80 e 90, ocorreram aumentos contínuos de leucemias, linfomas e carcinomas nessa faixa etária, acompanhando o aumento do uso e do contato com essas substâncias, seja por via respiratória, oral ou através da pele.  E foi com base nesse e em outros estudos no setor, que a Doutora Silvia Brandalise concluiu sua apresentação, demonstrando que “a exposição ambiental e alimentar aos fungicidas, inseticidas e herbicidas, associada a outros poluentes químicos, como metais pesados, radiação natural e não natural, além de vírus (HPV, HIV, EB), está positivamente associada ao desenvolvimento de doenças das crianças”, sendo que “fatores relacionados à idade dos pais, uso de drogas durante a gravidez, peso ao nascimento, hábitos sociais e culturais, doenças genéticas congênitas, representam coadjuvantes na gênese das malformações e câncer da criança”.
Se o INCA, Instituto Nacional do Câncer,estima que em nosso país devem ocorrer ao redor de um milhão de novos casos de câncer por ano;que boa parte deles são causados pela ação de agrotóxicos eque “a população rural constitui o grupo populacional mais diretamente exposto, muitas vezes desde a infância”,como destacado no documento “Diretrizes para a vigilância do câncer relacionado ao trabalho”www1.inca.gov.br/inca/Arquivos/diretrizes_cancer_ocupa.pdf); podemos nos perguntar quantos desses casos previstos ocorrerão em crianças?
E se, segundo o mesmo órgão institucional, “os médicos poderão salvar 40% dos pacientes, se diagnosticados com tempo”; podemos igualmente indagar quantos dos 60% que não irão ser curados serão meninos e meninas, privados da oportunidade de desfrutarem de suas vidas de modo tão precoce e doloroso?
Mas, embora seja um problema muito grave constatarmos um maior número de casos de câncer em crianças, ele não é o único quando se trata de identificar as influências danosas dos agrotóxicos no organismo infantil. Um problema cada vez mais noticiado em relação à infância das novas gerações é a epidemia de obesidade que vai se alastrando pelo mundo, junto com as mudanças na dieta alimentar das populações de seus países.
Os produtos industrializados, altamente calóricos, com grandes quantidades de açúcar, gordura e sabores artificiais que “viciam” o paladar humano, desenvolvidos pelas indústrias multinacionais do setor alimentício, já são responsabilizados pelo crescente aumento de peso em todas as faixas etárias de nossa sociedade de consumo. A publicidade infantil é debatida atualmente por governos, instituições de pesquisa e organizações sociais, já que promove um estímulo intenso aos indivíduos para que consumam alimentos altamente industrializados. Esse estímulo é mais questionável quando direcionado ao público infantil, que ainda não tem capacidade suficiente de analisar com consciência crítica uma propaganda e tende a ser facilmente manipulável.
Mas além desses “vilões” da obesidade mais difundidos como os salgadinhos e refrigerantes, há outros responsáveis pela atual epidemia que tanto está sobrecarregando o sistema de saúde de países de diferentes regiões do planeta.
O jornal New York Times trouxe, no início desseano,uma extensae bem fundamentada reportagem sobre a ligação entre agrotóxicos e obesidade. De acordo com a matéria do jornalista Nicholas D. Kristof, pesquisas recentes com experimentos científicos sérios, revisados por diversos cientistas, revelaram que agrotóxicos podem se comportar como desreguladores endócrinos1.
Os desreguladoresou disruptoresendócrinos são substâncias químicas que imitam os hormônios e, portanto, confundem o corpo humano. Já se sabia de suas ligações com o câncer e as malformações dos órgãos sexuais, mas uma nova área de pesquisa vem apontando o impacto que eles têm sobre o armazenamento de gordura.
É o caso de um estudo de outubro de 20122que apontou o ‘triflumizol’, fungicida utilizado em culturas de muitos alimentos, como vegetais de folhas verdes, como agente do desenvolvimento da obesidade em ratos.
Esse, entretanto, não é o primeiro estudo a associar agrotóxico com obesidade. Em 2010 já havia sido realizada uma pesquisa, na Espanha, com 500 mulheres a partir de seu primeiro trimestre de gravidez. Os resultados assinalaram que mulheres com resíduos de agrotóxicos (DDT, DDE e hexaclorobenzeno) em seu sangue, geraram bebês mais propensos a se tornarem obesos ao atingirem 14 meses de idade3.
Nos EUA, o papel desses agentes químicos foi reconhecido pela força-tarefa presidencial sobre obesidade infantil, e os Institutos Nacionais de Saúde tornaram-se importantes financiadores de investigação sobre as relações entre os disruptores endócrinos e a promoção da obesidade e dodiabetes.
Aqui, no Brasil, iniciativas e empenhos semelhantes a esses se tornam cada vez mais necessários. Principalmente quando analisamos as mais recentes estatísticas de vendas de agrotóxicos em nosso País: somos campeões mundiais no uso de agrotóxicos desde 20094, posição que vem sendo mantida desde então. Além do mais, as vendas de agrotóxico nos cinco primeiros meses deste ano registraram um aumento de 28,3 % em relação ao mesmo período de 20125, impulsionadas pelas culturas de soja, milho e feijão. São R$ 4,82 bilhões!
O conjunto de danos à saúde que os venenos usados no cultivo de alimentos desencadeia é amplo e inclui problemas que já atingem proporções responsáveis por uma piora na qualidade de vida de muitas comunidades, especialmente quando nos detemos na análise das novas gerações, cobaias de uma mistura de substâncias químicas em seu organismo em quantidade e variedade ímpar na sociedade humana até então. O que será dessas crianças quando se tornarem adultos, se já na infância sofrem de problemas como hipertensão, diabetes, danos neurológicos e até câncer, problemas antes encontrados em pessoas de meia-idade?
Com o atual sistema de cultivo, processamento e venda (estimulada pela ação publicitária) de alimentos repletos de substâncias tóxicas, cuja cadeia é inteiramente controlada por grandes empresas transnacionais, podemos perceber que as novas gerações definitivamente não têm como assegurar seu direito à saúde.
Quando refletimos sobre esses dados, percebemos o quanto as crianças que- inocentemente brincam nas proximidades das lavouras - em que ocorrem as pulverizações, cada vez mais intensas - estão sujeitas ao desenvolvimento de sérios problemas de saúde.
Um caso que ganhou repercussão nacional, no ano de 2013, e demonstra o altíssimo nível de irresponsabilidade na utilização de agrotóxicos em grandes plantações, envolveu justamente uma escola e seus pequenos alunos, moradores da zona rural do município de Rio Verde, no sudoeste goiano.
   Um avião, contratado para pulverizar uma fazenda de soja, sobrevoava a região de modo muito próximo ao solo. E, ao despejar a nuvem química sobre o campo, atingiu os locais em que 122 alunos da Escola Municipal São José do Pontal faziam atividades, provocando, imediatamente, reações adversas em seus organismos. Vomitando e sentido tonturas e fortes dores de cabeça (o que é comum em casos de intoxicação, segundo o SAMU),essas crianças foram socorridas por equipes médicas despreparadas, pois foram liberadas em cerca de duas horas - sendo necessária a intervenção da polícia para garantir o período mínimo de observação recomendado que éde 48 horas - e receberam soro fisiológico, procedimentos incorretos para esses casosde acordo com Murilo Souza, professor da universidade de Goiás e colaborador do Dossiê Abrasco sobre os impactos dos Agrotóxicos na Saúde no Brasil. Após se recuperarem dos sintomas agudos decorrentes da intoxicação sofrida, deram depoimentos dramáticos sobre a experiência que vivenciaram.
   É possível ouvir essas vozes assustadas no documentário “Pontal de Buriti- brincando na chuva de veneno”, realizado com apoio do comitê da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida em Goiás e disponível na Internet. São narrativas que mostram o choque dos meninos e meninas ao verem a aventura da aproximação do aviãozinho (que aos seus olhos seria como um grande brinquedo) transformar-se em drama devido às agressões que as substâncias tão tóxicas, despejadas por ele, desencadearamem seus corpos frágeis.
   Mais do que qualquer estudo científico, esse tipo de depoimento tem o poder de nos dar a dimensão do absurdo que nossa sociedade está cometendo ao manter um modelo de produção de alimentos em que impera o uso de substâncias tão danosas a esses seres humanos em desenvolvimento. Que ao menos as falas sinceras e claras dessas pequenas vítimas nos ajudem a tomar as medidas tão necessárias para fazer valer no Brasil o direito a uma infância saudável, abastecida com alimentos seguros e nutritivos e longe do sofrimento vivenciado em hospitais, com tratamentos agressivos como os que são submetidos os pacientes com doenças graves como o câncer.
           

1 “WarningsFrom a Flabby Mouse” (Avisos de um ratoflácido) – New York Times 20.01.2013 .Também disponível na versão electronica do jornal no site http://www.nytimes.com/2013/01/20/opinion/sunday/kristof-warnings-from-a-flabby-mouse.html?_r=3& (acessado em 22/09/2013)
2Xia Li, Hang T. Pham, Amanda S. Janesick e Bruce Blumberg- “Triflumizoleisanobesogen in micethatactsthroughPeroxisomeProliferatorActivated Receptor Gama” disponívelna Internet:www.ehp.niehs. nih.gov/wp-content/uploads/2012/10/ehp.1205383.pdf-site acessado em 22.09.2013
3MAMendez, et al. Exposição pré-natal composto organoclorado, rápido ganho de peso e excesso de peso na infância. Environmental Health Perspectives, 2010. doi: 10.1289/ehp.1002169
4Em 2009 o Brasil já tinha ultrapassado os EUA e havia se tornado o maior consumidor de agrotóxicos do mundo. Agora, o sindicato das empresas de agroquímicos confirma o posto e um novo recorde. O meio ambiente brasileiro recebeu mais de 1 milhão de toneladas de agrotóxicos em 2009. Mais de 22 kg por hectare de lavoura. Ou ainda, 5,2Kg por brasileiro (http://pratoslimpos.org.br/?m=201005&paged=2acessado em 26 de setembro de 2013)

5 Brasil, Ministério da Agricultura. Mercado de Defensivos: câmara temática de insumos agropecuários. Brasília, jan./maio 2013. Disponível em: http://www.agricultura.gov.br/arq editor/ file/camaras_tematicas/insumos_agropecurarios/68RO/App_Defensivo _insumos.pdf> Acesso em 25 jun. 2013


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